domingo, 11 de abril de 2010

SOBRE A TIPICIDADE DA ‘‘COLA ELETRÔNICA’’

Revista Jurídica Consulex nº 315
Propostas e Projetos
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SOBRE A TIPICIDADE DA ‘‘COLA ELETRÔNICA’’

Por Auriney Uchôa de Brito


As respostas jurídicas para fatos envolvendo a utilização das novas tecnologias da informação estão sempre carregadas de elementos fomentadores de discussões doutrinárias. A última delas referiu-se à antiga prática da cábula, popularmente conhecida como cola, que, quando incrementada com o uso da tecnologia, desnorteou os aplicadores do direito, gerando uma celeuma que durou anos para ser decidida.

A cola nada mais era do que uma engenharia utilizada pelos alunos para resolver questões de prova com o auxílio de pequenas anotações não autorizadas pelos professores. De acordo com a criatividade e habilidade, variavam entre a conhecida sanfoninha de papel, com lembretes redi­gidos da menor maneira possível, até aquela usual esticada de pescoço para enxergar a resposta do colega ao lado.

Conduta comum nos bancos escolares, passou a ser vista com maior reprovabilidade quando utilizada em processos seletivos mais sérios, como vestibulares e concursos públicos. O dito popular “quem não cola não sai da escola” ganhou um tom fraudulento e criminoso para quem buscava justificar a burla realizada para ingressar na faculdade ou conquistar uma vaga nos quadros do funcionalismo público.

De uma ingênua prática escolar, a cola – agora com uma roupagem hi-tech denominada cola eletrônica – passou a ser o modus operandi de poderosos esquemas montados para fraudar vestibulares e concursos públicos, com a utilização das mais modernas ferramentas tecnológicas disponíveis no mercado, como celulares, pagers, dentre outras.

Fraudes como aquelas ocorridas na Universidade Federal do Amazonas e na Universidade Federal do Acre (cf. informações da Polícia Federal, os criminosos montaram uma central de transmissão de dados com a utilização de ondas de rádio de baixa frequência e pagers adaptados em relógios de pulso) constituem-se os maiores exemplos dessa realidade.

À época, a Polícia Federal apresentou indicativos de que esse grupo vinha fraudando vestibulares e con­cursos públicos desde 1988, inclusive em universidades de Brasília, Mato Grosso, Rio de Janeiro e São Paulo. O valor cobrado pela participação variava de acordo com o grau de dificuldade e o reconhecimento da instituição de ensino ou o salário do cargo pretendido e, presume-se, tenha chegado a 70 mil reais.

O que ocorreu, portanto, foi um comércio de vagas que beneficiou os compradores em detrimento de inúmeras outras pessoas e da credibilidade de instituições federais e particulares de ensino, que gastaram centenas de milhares de reais para promover os processos seletivos.

Sem levar em consideração os outros crimes imputados aos responsáveis, tais como extorsão, sonegação, lavagem de capitais etc., o objetivo deste artigo é analisar os elementos constitutivos da cola eletrônica, para verificar em que tipo penal ela se enquadra, ou se realmente não existe previsão legal para punir essa conduta.

Antes de manifestarmos nosso posicionamento, imperioso que se faça uma retrospectiva da jurisprudência criada na oportunidade do julgamento de casos como os citados e de que forma ficou decidida a questão.

Recebido o inquérito policial, o Ministério Público Federal subsumiu a conduta dos fraudadores nos tipos penais descritos nos arts. 171, § 3° e 299, do Código Penal, julgando tratar-se de estelionato qualificado e, posteriormente, falsidade ideológica.

O Juiz Federal da Seção Judiciária do Estado Acre, por sua vez, entendeu que o estelionato restou configurado pelas provas e confissões sobre as vantagens indevidas obtidas em prejuízo das universidades que foram induzidas em erro ao aprovar alunos que não estavam intelectualmente habilitados para nelas ingressar legitimamente.1

Em que pese ter sido acolhida tal tipificação pelo Juiz sentenciante, o fato é que durante as investigações e o trâmite da ação penal, mais de vinte habeas corpus foram instaurados pela defesa dos acusados, todos alegando atipicidade da conduta de fraudar processos seletivos mediante cola eletrônica, pelo que não haverá como analisarmos a evolução de todas as decisões, restringindo-nos ao acompanhamento da ideia central.

Inicialmente, o TRF-1ª Região, ainda quando se questionava a prisão provisória decretada em desfavor dos pacientes, posicionou-se no sentido da sua manutenção, alegando estarem presentes todos os pressupostos exigidos no art. 312 do CPP, ou seja, no mínimo restou verificada a existência de “crime doloso” punido com reclusão.2 Quando dessa decisão, a Corte encontrava-se dividida entre a tipicidade e a atipicidade da cola eletrônica.3

O Superior Tribunal de Justiça, ao examinar irresignações contra as decisões apontadas, já vinha se manifestando reiteradamente pela atipicidade das fraudes realizadas com cola eletrônica, sob o argumento de que estas não configuravam estelionato nem falsidade ideológica, pela ausência dos elementos constitutivos dos tipos.4

A questão parecia ter alcançado mares mais calmos, porém, ao julgar o HC nº 41.590, ainda referente à operação realizada no Acre, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, acompanhando o voto proferido pelo Relator, Ministro Paulo Galotti, decidiu que seria inviável o trancamento da ação penal sob a alegação de que a cola eletrônica é conduta atípica e, ainda, “que o argumento de que não teria existido vítima certa ou prejuízo determinado não pode subsistir, tendo em conta que ao menos a Universidade Federal do Acre teve um prejuízo, como se vê da sentença condenatória, de aproximadamente R$ 450.000,00 (...).”5

Assim como ocorreu no TRF-1ª Região, o Superior Tribunal de Justiça partiu-se ao meio com os votos divergentes. De um lado, os que acreditavam ser a cola eletrônica uma conduta reprovável do ponto de vista social, mas penalmente atípica. De outro, sustentou-se uma corrente que subsumiu o fato ao tipo do estelionato qualificado por ter sido cometido contra entidade de direito público.

Seguindo nossa organização hierárquica, aguardou-se a provocação do Supremo Tribunal Federal no caso em comento. Ocorre que a celeuma foi suscitada antes, no Inquérito nº 1.145-PB, em razão de um dos indiciados ser deputado federal. Mas, durante o julgamento do feito, sobrestado devido a sucessivos pedidos de vista, ingressou na Corte o HC nº 88.967-AC, fruto de irresignação contra a decisão do STJ que julgou típica a conduta apurada.

Dois processos, portanto, instaram o Supremo Tribunal Federal a dar solução para um problema que vinha incomodando a Justiça brasileira. Mas o desfecho não foi tão simples e muito menos unânime. A Corte também restou dividida, tendo o Ministro Maurício Corrêa, relator do primeiro processo, rejeitado a denúncia por entender atípica a conduta. Como o objeto dos dois processos era o mesmo, o segundo foi sobrestado até o julgamento final do primeiro, do qual foram concedidas vistas sucessivas aos Ministros Ayres Britto e Cezar Peluso. Em votação apertada (5x4), a decisão do Plenário foi pela rejeição da denúncia, em razão da atipicidade formal da famigerada cola eletrônica.

A partir daí, o entendimento do Plenário passou a ser aplicado, mas com ressalva de posicionamento pessoal contrário, como ocorreu no próprio Supremo, na oportunidade do julgamento do HC nº 88.967-AC, DJ 13.04.07.

Sem discutir o alcance dos efeitos dessa decisão, doravante serão analisadas as elementares dos crimes de estelionato e falsidade ideológica, para verificar a possibilidade ou não de se enquadrar as condutas estudadas.

Prescreve o Código Penal: “Art. 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento. Pena – Reclusão de um a cinco anos e multa. (...) § 3° A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência”.

É importantíssimo ressaltar que tal prática divide-se em duas partes: uma referente aos executores do esquema; outra alusiva aos interessados que compram as vagas. As condutas não são juridicamente equivalentes, o que impõe uma análise apartada, sob pena de se incidir em erros.

Quanto à conduta dos executores do esquema, com a devida vênia, recapitulando a ação da quadrilha, percebe-se que é perfeitamente possível sua subsunção ao tipo penal do art. 171 do CP. Em um dos casos, os responsáveis obtiveram ilicitamente uma vantagem econômica de aproximadamente R$ 450.000,00 (quatrocentos e cinquenta mil reais) – obtenção de vantagem.

A mis-en-scène foi devidamente premeditada para burlar o teste de conhecimento realizado por uma instituição federal de ensino, a fim de que ela aprovasse candidatos que não estavam intelectualmente habilitados – realização da fraude.

A Universidade Federal do Acre (vítima dos fraudadores) sofreu um dano patrimonial efetivo de aproximadamente R$ 450.000,00 (quatrocentos e cinquenta mil reais), de acordo com a Polícia Federal – vítima determinada e dano patrimonial.

Mesmo que as vítimas fossem indeterminadas, o fato não seria atípico, podendo-se enquadrá-lo no art. 2º, IX, da Lei nº 1.521/51, que define exploração da credulidade pública como sendo a conduta de quem busca “obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos”. Logo, não é a indeterminação da vítima que vai determinar a atipicidade da cola eletrônica.

Por outro lado, os interessados que pagaram para ingressar na universidade não poderiam responder por estelionato. Apesar de terem contribuído para a execução da fraude, não tiveram participação nos lucros: a vantagem foi pessoal. Não se pode, assim, analisar a elementar do tipo pelo que se deixará de gastar por se estar em universidade pública.

Mas poderiam os interessados responder por falsidade ideológica? Nos termos do Código Penal, responderá pelo crime do art. 299 quem “Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele deva constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”.

A análise do referido dispositivo demonstra que este leva em conta a mendacidade da informação e, portanto, não comporta a cola eletrônica, já que, neste caso, o agente não pratica nenhuma das condutas previstas, e sim a inserção, na prova, da resposta correta. Do ponto de vista jurídico, não é relevante que se dê resposta diversa da exigida, sendo a única consequência a atribuição de nota zero à questão.

Ademais, se para configurar falsidade ideológica, a incapacidade intelectual do agente não faz diferença, nem os executores, nem os beneficiados pelas respostas às questões da prova poderiam ser enquadrados no tipo do art. 299 do CP, o que demonstra haver uma dificuldade na subsunção de todas as condutas que formam essa complexa e repugnante prática.

A complexidade do tema é objeto de diversos projetos de lei em trâmite na Câmara Federal desde 1999, os quais se encontram apensados ao PL nº 1.086/99, destacando-se, no que interessa, os PLs nºs 59/07 e 1.441/07, que visam incluir a cola eletrônica como crime contra o patrimônio.

É bem verdade que fraudes em vestibulares e con­cursos públicos vêm atormentado a vida dos candidatos que pleiteiam uma vaga, e também causando prejuízos incomensuráveis para o erário.Cabe, porém, a seguinte indagação: Criminalizar essa conduta vai impedir que se repita?

Decerto, a mera previsão legislativa de um tipo penal não tem o condão de impedir a reiteração da conduta que lhe deu ensejo, mas certamente trará mais resultados favoráveis à sociedade do que a declaração, em última instância, de que um fato desprezível como este não constitui crime.

Há, portanto, que se encontrar uma forma de punir esses marginais que buscam lucro em detrimento do esforço de milhares de brasileiros que lutam para conquistar uma vaga na universidade ou no serviço público. Pior será curvar-se à decisão do Pretório Excelso e assistir ao sucesso das quadrilhas hi-tech, que ficam cada vez mais à vontade para agir diante das falhas legislativas.

Estima-se que com este debate a questão seja novamente posta em pauta, dada a necessidade urgente de se encontrar meios capazes de punir os responsáveis por fraudes como aquelas aqui expostas. 

NOTAS
1 Sentença prolatada na Ação Penal nº 2004.30.00.001204-0.

2 HC nº 2004.01.00.029509-0-AC. TRF-1ª Região, Turma Especial de Férias, Relª. Desª. Isabel Galotti, j. 29.07.94.

3 HC nº 2004.01.00.011990. TRF-1ª Região, T3, Rel. Des. Olindo Menezes, j. 29.06.04.

4 RHC nº 7.376-SC. STJ, T6, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 01.07.98.

5 HC nº 41.590-AC. STJ, T6, Rel. Min. Paulo Gallotti, j. 04.05.06.

3 comentários:

  1. Oi professor! Também adorei o seu blog!
    Eu vi que o senhor sugeriu o simpósio: Counter eCrime Operations Summit IV em São Paulo.
    Será que enriqueceria o meu trabalho de monografia se eu participasse?

    Obrigada.

    Priscila (aluna FMU).

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  2. professor sua materia e excelente. meus parabens estou fazendo um artigo sobre a cola eletrônica para a policia militar, pois eles não sabem como proceder, em caso de pegar um candidato com cola eletrônica em seus concursos. em caso de saber mais informações por gentileza envie para o meu email. Felipe policia@ig.com.br

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