domingo, 11 de abril de 2010

CRIMES DO COLARINHO BRANCO:

Revista Jurídica Consulex nº 312
Contexto

15/1/2010

CRIMES DO COLARINHO BRANCO: 70 anos de luta contra a desigualdade no Sistema Penal

Por Auriney Uchôa de Brito


Os “crimes do colarinho branco” não podem ser enumerados num rol ou mesmo numa lei específica, por se constituírem uma teo­ria da Criminologia. A white collar crime, como veremos, leva em conta a função que o criminoso desempenha na sociedade.

A origem da criminalidade remete à própria origem do homem. A Criminologia, durante séculos, buscou respostas para tornar efetivas as tentativas de controle social. Diversas foram as escolas, teorias e teóricos que trabalharam em nome desta problemática, o que confere uma importância especial a quem busca soluções para muitas questões da contemporaneidade criminal.

Não teremos espaço para análises verticais das teorias da Criminologia, pelo que nos dedicaremos a alguns conceitos relevantes e soluções encontradas na Itália e nos Estados Unidos, apenas para demonstrar quão genial e revolucionário foi o surgimento da “teoria dos crimes do colarinho branco”.

Inicialmente, é importante ressaltar que a Criminologia classifica as teorias quanto aos fatores que ensejam a criminalidade, a saber: (i) monofactorial – aponta uma única causa idônea para a ocorrência de crimes; (ii) multifactorial – explica a criminalidade a partir de diversos fatores ou causas múltiplas. Outra classificação relaciona-se com o objeto das investigações, que pode ser de natureza endógena (consideram-se as características físicas do indivíduo na análise do ato criminoso) ou hexógena (o indivíduo criminoso é influenciado pelo meio em que vive).

Na Itália, em 1876, o maior expoente da Escola Positivista, o Médico CESARE LOMBROSO, lançou a obra L’Uomo Delinquente. Para ele, um criminólogo endógeno monofactorial, a prática de crimes era determinada pelos chamados “estigmas atávicos” de certos indivíduos. Ou seja, algumas pessoas eram “delinquentes natos” e poderiam ser identificadas, por exemplo, pelas medidas cranianas ou traços fisionômicos. Aquele que tinha a testa proeminente e a cabeça fora dos padrões normais tenderia ao cometimento de crimes.1

Reviravoltas nos estudos até então realizados levaram à conclusão de que várias causas, isoladas ou cumulativamente, explicariam a criminalidade. Um denominador comum era quanto ao grau de miserabilidade dos indivíduos.

De acordo com os defensores da teoria exógena, fatores socioeconômicos, como miséria, pobreza e refratariedade ao trabalho, eram determinantes da criminalidade. E por muito tempo – inclusive com forte reflexo nos dias atuais – só se explicaram os crimes praticados por doentes, pobres, subculturados e malsucedidos. Até que, em 27 de dezembro 1939, o sociólogo americano EDWIN SUTHERLAND suscitou a teoria do white collar crime, na American Sociological Association. Os estudos realizados por ele, que teve sua obra completa (White Collar Crime – The Uncut Version) publicada somente em 1983, influenciaram uma série de pensamentos criminológicos.2

Ao contrário dos teóricos anteriores, SUTHERLAND não visava apenas uma compreensão etiológica da criminalidade, e sim descortinar a desigualdade verificada na distribuição da justiça penal, provando a todos que pessoas ricas e bem-sucedidas também cometiam crimes, mas eram liberadas pelo “filtro” existente no sistema de persecução penal.

O sociólogo, após analisar 70 das maiores empresas norte-americanas e chegar à conclusão de que o fator econômico jamais poderia servir como única causa idônea para explicar a criminalidade, arruinou uma ideia construída com base em séculos de pesquisas. Ora, se os poderosos delinquiam, a situação financeira da pessoa não era o que a levava a delinquir. Mesmo que essa ideia só tenha sido divulgada no século XX, afirma-se que poderosos de todos os tempos cometeram crimes. Curiosamente, o primeiro processo penal de que se tem notícia refere-se a um “crime do colarinho branco”. Autos em folhas de papiro, encontrados por arqueólogos, relatam que, no Egito do Rei Ramsés, sacerdotes confessaram ter profanado a sepultura do Rei Sebekemsaf.

SUTHERLAND define “crime do colarinho branco” como toda conduta criminosa cometida no âmbito da sua profissão por uma pessoa de respeitabilidade e elevado estatuto social. Mas, se a situação econômica não é causa da criminalidade, qual seria então?

Para o sociólogo americano, a delinquência poderia ser explicada pela “teoria da associação diferencial” ou “de aprendizagem”, isto é, aquela em que o criminoso seria um indivíduo com acesso a um grande número de definições favoráveis ao cometimento de crime, e a motivação, o conhecimento do modus operandi. Tal afirmação, no entanto, logo foi posta em xeque, sob o argumento de que explicava a iniciação da pessoa no crime, mas não a existência prévia do delito. Ora, se a pessoa teve definições favoráveis à prática de determinada conduta, é porque alguém já a cometera antes.

O teórico então se socorreu da “teoria da desorganização social” ou da “organização social diferenciada” que, apesar de pouco divulgada, sustentou o pensamento de que o industrialismo teria criado uma organização social mais complexa e diferenciada, o que prejudicou o controle dos comportamentos individuais.

No Brasil, o reconhecimento de que se vive num país corrupto, sem soluções à vista, gera a neutralização de culpa aos que optam por ignorar o sistema de arrecadação de tributos, sob a forte alegação de que certamente a verba terá um destino diverso daquele esperado pelo povo. A partir daí, como diria SUTHERLAND, quem tiver mais definições favoráveis à repetição deste fato, tenderá ao seu cometimento.

Outro questionamento refere-se à existência de pessoas que vivem em comunidades desorganizadas, com definições favoráveis à prática de crimes, mas optam por não praticá-los. LOMBROSO diria que é porque elas não têm um “cabeção”. Já para o sociólogo americano, além do excesso de definições favoráveis, o crime pressupõe concomitantemente a inexistência de definições desfavoráveis combinada com uma boa oportunidade para cometê-lo.

A Professora de Coimbra, CLÁUDIA MARIA CRUZ DOS SANTOS, defende que esta aporia poderia ser solucionada com o resgate de alguns conceitos do interacionismo simbólico, demonstrando que cada um de nós constrói seu ego comportamental a partir da interação com os outros. Ou seja, é possível que indivíduos diferentes cheguem a interpretações distintas de situações idênticas, mesmo diante de um comportamento precedente.3

Uma outra crítica, igualmente forte, refere-se à subjetividade do conceito proposto pelo sociólogo americano, que não teria levado em consideração o fato criminoso, mas apenas o sujeito do crime, gerando propostas que pugnavam pela inversão do objeto da investigação, de modo a ensejar que condutas materialmente idênticas fossem desprezadas pelo simples fato de não terem sido praticadas pela elite. Ora, se os crimes eram do “colarinho branco” e não os “criminosos”, a análise deveria ter como objeto as especificidades do próprio fato criminoso e não somente as do autor das infrações. Atribuindo-se essa objetividade material ao conceito de white collar crime, logicamente que este sofreu considerável expansão. Daí, a ideia dos blue collar crimes.

Se os primeiros referiam-se ao estilo da vestimenta do criminoso (paletó, gravata e camisa com o colarinho branco), os segundos buscaram inspiração nos “macacões” azuis utilizados pelos operários, para estender a persecução penal também aos empregados que cometiam crimes abusando da confiança de seus empregadores.

Não há como discordar que essa ampliação do conceito colabora para o fortalecimento dos mecanismos de combate a essa espécie de crimes, mas tal expansão não se coaduna com os interesses do idealizador da teoria. A preocupação maior era com o tratamento desigual dispensado pelo Estado ao se deparar com condutas idênticas, punindo aquelas praticadas por criminosos comuns, enquanto as cometidas por poderosos eram excluídas de sua apreciação.

A pesquisa, portanto, teve por objetivo mostrar que o sistema penal é desigual. Para isso, foi preciso provar que nem só os pobres e muito menos aqueles com patologias endógenas cometiam crimes, e que estas não eram causas suficientes para explicar a criminalidade. Não se discute, assim, se um pobre pode praticar crime inerente ao rico, mas como o Estado reage ante a autoria da infração penal.

Demonstrada a desigualdade, o sociólogo americano iniciou uma busca pela interrupção da impunidade dos poderosos. E hoje, 70 anos depois dessa louvável iniciativa, percebe-se que nosso sistema continua tal qual no início do século passado.

SUTHERLAND, em certos pontos, sufocado pelo desequilíbrio e indignado com o massacre sofrido pelos desprestigiados, acaba por pedir punição a todo custo, chegando a sugerir que a desigualdade deveria ser inversa, mais pena para os ricos, menos para os pobres, pois, de acordo com seu entendimento, o grande mal da sociedade é o comportamento desajustado dos poderosos.

No último ponto até lhe damos razão, mas se o direito penal é estigmatizante e dessocializador para os pobres, também o é para os poderosos. E, considerando-se que o direito penal é a mais forte arma de controle social, logo não se pode prezar pelo seu endurecimento, mas, simplesmente, pela sua aplicação proporcional ao fato, e o principal, independentemente do status social do criminoso.

Além da corrupção, algumas peculiaridades dos “crimes do colarinho branco”, como difusidade de vítimas, habitualidade e especialização das condutas, são apontadas como causas atuais da impunidade, o que leva a afirmar-se que o Estado não está preparado para coibir essas práticas.

Coincidentemente, a “teoria do crime do colarinho branco” surgiu logo em seguida à crise econômica de 1929, persistindo até hoje a desigualdade punitiva. Se, àquela época, a culpa pela crise foi atribuída aos “quebrados”, que não podiam consumir, agora o que se vê são os empolgados beneficiários do subprime assistirem, impunes, ao espetáculo.

De nada adianta um Estado Democrático de Direito que busca reduzir o preconceito e a desigualdade social, se a prisão ainda é tão somente para “afrodescendentes, meretrizes e desafortunados”, sem que se proporcione aos poderosos ao menos alguns meses de estadia no “aprazível” sistema carcerário, quando merecerem.

NOTAS
1 LOMBROSO, Cesare. O Homem Delinquente. Trad. Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone, 2007.

2 SANTOS, Cláudia Maria Cruz. O Crime do Colarinho Branco – Da Origem do Conceito e sua Relevância Criminológica à Questão da Desigualdade na Administração da Justiça Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2001.

3 Op. cit., p. 97.

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