Contexto
15/1/2010
CRIMES DO COLARINHO BRANCO: 70 anos de luta contra a desigualdade no Sistema Penal
Por Auriney Uchôa de Brito
Os “crimes do colarinho branco” não podem ser enumerados num rol ou mesmo numa lei específica, por se constituírem uma teoria da Criminologia. A white collar crime, como veremos, leva em conta a função que o criminoso desempenha na sociedade.
A origem da criminalidade remete à própria origem do homem. A Criminologia, durante séculos, buscou respostas para tornar efetivas as tentativas de controle social. Diversas foram as escolas, teorias e teóricos que trabalharam em nome desta problemática, o que confere uma importância especial a quem busca soluções para muitas questões da contemporaneidade criminal.
Não teremos espaço para análises verticais das teorias da Criminologia, pelo que nos dedicaremos a alguns conceitos relevantes e soluções encontradas na Itália e nos Estados Unidos, apenas para demonstrar quão genial e revolucionário foi o surgimento da “teoria dos crimes do colarinho branco”.
Inicialmente, é importante ressaltar que a Criminologia classifica as teorias quanto aos fatores que ensejam a criminalidade, a saber: (i) monofactorial – aponta uma única causa idônea para a ocorrência de crimes; (ii) multifactorial – explica a criminalidade a partir de diversos fatores ou causas múltiplas. Outra classificação relaciona-se com o objeto das investigações, que pode ser de natureza endógena (consideram-se as características físicas do indivíduo na análise do ato criminoso) ou hexógena (o indivíduo criminoso é influenciado pelo meio em que vive).
Na Itália, em 1876, o maior expoente da Escola Positivista, o Médico CESARE LOMBROSO, lançou a obra L’Uomo Delinquente. Para ele, um criminólogo endógeno monofactorial, a prática de crimes era determinada pelos chamados “estigmas atávicos” de certos indivíduos. Ou seja, algumas pessoas eram “delinquentes natos” e poderiam ser identificadas, por exemplo, pelas medidas cranianas ou traços fisionômicos. Aquele que tinha a testa proeminente e a cabeça fora dos padrões normais tenderia ao cometimento de crimes.1
Reviravoltas nos estudos até então realizados levaram à conclusão de que várias causas, isoladas ou cumulativamente, explicariam a criminalidade. Um denominador comum era quanto ao grau de miserabilidade dos indivíduos.
De acordo com os defensores da teoria exógena, fatores socioeconômicos, como miséria, pobreza e refratariedade ao trabalho, eram determinantes da criminalidade. E por muito tempo – inclusive com forte reflexo nos dias atuais – só se explicaram os crimes praticados por doentes, pobres, subculturados e malsucedidos. Até que, em 27 de dezembro 1939, o sociólogo americano EDWIN SUTHERLAND suscitou a teoria do white collar crime, na American Sociological Association. Os estudos realizados por ele, que teve sua obra completa (White Collar Crime – The Uncut Version) publicada somente em 1983, influenciaram uma série de pensamentos criminológicos.2
Ao contrário dos teóricos anteriores, SUTHERLAND não visava apenas uma compreensão etiológica da criminalidade, e sim descortinar a desigualdade verificada na distribuição da justiça penal, provando a todos que pessoas ricas e bem-sucedidas também cometiam crimes, mas eram liberadas pelo “filtro” existente no sistema de persecução penal.
O sociólogo, após analisar 70 das maiores empresas norte-americanas e chegar à conclusão de que o fator econômico jamais poderia servir como única causa idônea para explicar a criminalidade, arruinou uma ideia construída com base em séculos de pesquisas. Ora, se os poderosos delinquiam, a situação financeira da pessoa não era o que a levava a delinquir. Mesmo que essa ideia só tenha sido divulgada no século XX, afirma-se que poderosos de todos os tempos cometeram crimes. Curiosamente, o primeiro processo penal de que se tem notícia refere-se a um “crime do colarinho branco”. Autos em folhas de papiro, encontrados por arqueólogos, relatam que, no Egito do Rei Ramsés, sacerdotes confessaram ter profanado a sepultura do Rei Sebekemsaf.
SUTHERLAND define “crime do colarinho branco” como toda conduta criminosa cometida no âmbito da sua profissão por uma pessoa de respeitabilidade e elevado estatuto social. Mas, se a situação econômica não é causa da criminalidade, qual seria então?
Para o sociólogo americano, a delinquência poderia ser explicada pela “teoria da associação diferencial” ou “de aprendizagem”, isto é, aquela em que o criminoso seria um indivíduo com acesso a um grande número de definições favoráveis ao cometimento de crime, e a motivação, o conhecimento do modus operandi. Tal afirmação, no entanto, logo foi posta em xeque, sob o argumento de que explicava a iniciação da pessoa no crime, mas não a existência prévia do delito. Ora, se a pessoa teve definições favoráveis à prática de determinada conduta, é porque alguém já a cometera antes.
O teórico então se socorreu da “teoria da desorganização social” ou da “organização social diferenciada” que, apesar de pouco divulgada, sustentou o pensamento de que o industrialismo teria criado uma organização social mais complexa e diferenciada, o que prejudicou o controle dos comportamentos individuais.
No Brasil, o reconhecimento de que se vive num país corrupto, sem soluções à vista, gera a neutralização de culpa aos que optam por ignorar o sistema de arrecadação de tributos, sob a forte alegação de que certamente a verba terá um destino diverso daquele esperado pelo povo. A partir daí, como diria SUTHERLAND, quem tiver mais definições favoráveis à repetição deste fato, tenderá ao seu cometimento.
Outro questionamento refere-se à existência de pessoas que vivem em comunidades desorganizadas, com definições favoráveis à prática de crimes, mas optam por não praticá-los. LOMBROSO diria que é porque elas não têm um “cabeção”. Já para o sociólogo americano, além do excesso de definições favoráveis, o crime pressupõe concomitantemente a inexistência de definições desfavoráveis combinada com uma boa oportunidade para cometê-lo.
A Professora de Coimbra, CLÁUDIA MARIA CRUZ DOS SANTOS, defende que esta aporia poderia ser solucionada com o resgate de alguns conceitos do interacionismo simbólico, demonstrando que cada um de nós constrói seu ego comportamental a partir da interação com os outros. Ou seja, é possível que indivíduos diferentes cheguem a interpretações distintas de situações idênticas, mesmo diante de um comportamento precedente.3
Uma outra crítica, igualmente forte, refere-se à subjetividade do conceito proposto pelo sociólogo americano, que não teria levado em consideração o fato criminoso, mas apenas o sujeito do crime, gerando propostas que pugnavam pela inversão do objeto da investigação, de modo a ensejar que condutas materialmente idênticas fossem desprezadas pelo simples fato de não terem sido praticadas pela elite. Ora, se os crimes eram do “colarinho branco” e não os “criminosos”, a análise deveria ter como objeto as especificidades do próprio fato criminoso e não somente as do autor das infrações. Atribuindo-se essa objetividade material ao conceito de white collar crime, logicamente que este sofreu considerável expansão. Daí, a ideia dos blue collar crimes.
Se os primeiros referiam-se ao estilo da vestimenta do criminoso (paletó, gravata e camisa com o colarinho branco), os segundos buscaram inspiração nos “macacões” azuis utilizados pelos operários, para estender a persecução penal também aos empregados que cometiam crimes abusando da confiança de seus empregadores.
Não há como discordar que essa ampliação do conceito colabora para o fortalecimento dos mecanismos de combate a essa espécie de crimes, mas tal expansão não se coaduna com os interesses do idealizador da teoria. A preocupação maior era com o tratamento desigual dispensado pelo Estado ao se deparar com condutas idênticas, punindo aquelas praticadas por criminosos comuns, enquanto as cometidas por poderosos eram excluídas de sua apreciação.
A pesquisa, portanto, teve por objetivo mostrar que o sistema penal é desigual. Para isso, foi preciso provar que nem só os pobres e muito menos aqueles com patologias endógenas cometiam crimes, e que estas não eram causas suficientes para explicar a criminalidade. Não se discute, assim, se um pobre pode praticar crime inerente ao rico, mas como o Estado reage ante a autoria da infração penal.
Demonstrada a desigualdade, o sociólogo americano iniciou uma busca pela interrupção da impunidade dos poderosos. E hoje, 70 anos depois dessa louvável iniciativa, percebe-se que nosso sistema continua tal qual no início do século passado.
SUTHERLAND, em certos pontos, sufocado pelo desequilíbrio e indignado com o massacre sofrido pelos desprestigiados, acaba por pedir punição a todo custo, chegando a sugerir que a desigualdade deveria ser inversa, mais pena para os ricos, menos para os pobres, pois, de acordo com seu entendimento, o grande mal da sociedade é o comportamento desajustado dos poderosos.
No último ponto até lhe damos razão, mas se o direito penal é estigmatizante e dessocializador para os pobres, também o é para os poderosos. E, considerando-se que o direito penal é a mais forte arma de controle social, logo não se pode prezar pelo seu endurecimento, mas, simplesmente, pela sua aplicação proporcional ao fato, e o principal, independentemente do status social do criminoso.
Além da corrupção, algumas peculiaridades dos “crimes do colarinho branco”, como difusidade de vítimas, habitualidade e especialização das condutas, são apontadas como causas atuais da impunidade, o que leva a afirmar-se que o Estado não está preparado para coibir essas práticas.
Coincidentemente, a “teoria do crime do colarinho branco” surgiu logo em seguida à crise econômica de 1929, persistindo até hoje a desigualdade punitiva. Se, àquela época, a culpa pela crise foi atribuída aos “quebrados”, que não podiam consumir, agora o que se vê são os empolgados beneficiários do subprime assistirem, impunes, ao espetáculo.
De nada adianta um Estado Democrático de Direito que busca reduzir o preconceito e a desigualdade social, se a prisão ainda é tão somente para “afrodescendentes, meretrizes e desafortunados”, sem que se proporcione aos poderosos ao menos alguns meses de estadia no “aprazível” sistema carcerário, quando merecerem.
2 SANTOS, Cláudia Maria Cruz. O Crime do Colarinho Branco – Da Origem do Conceito e sua Relevância Criminológica à Questão da Desigualdade na Administração da Justiça Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2001.
3 Op. cit., p. 97.
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